Em Um Corpo que Cai (Vertigo), o mestre Hitchcock está em sua melhor forma. Acredito que seu maior talento consiste em multiplicar camadas de significados sem que nenhuma delas rompa completamente uma com as outras truncando o fluxo da narrativa. Vertigo é tudo o que Cristopher Nolan queria fazer em seu ambicioso A Origem, mas que foi perdido em um formalismo exibicionista. Aliás, revendo Metrópolis, de Fritz Lang, percebi que A Origem cai num problema similar ao proposto por aquele filme: “como multiplicar camadas de significados sem fazer com que o público se perca completamente nas associações?” A solução de ambos foi apelar para o didatismo, o que não tira a força de Metrópolis, especialmente por seu caráter alegórico que sempre direciona o sentido para outro lugar, mas empobrece muito a narrativa de Nolan, prendendo o espectador à forma e ao brilhantismo egocêntrico do diretor. Foi o preço pago pela inovação: as camadas de significado vão sendo inseridas bruscamente ao longo do filme por meio de cortes radicais que inserem novas camadas narrativas e não uma multiplicidade de sentidos, presentes desde o início. É o que Leonardo Di Caprio deixa bem claro, uma idéia bastante simples (no fundo, uma questão de cunho comercial), que precisa se tornar um grande aparato hollywoodiano, o filme que assistimos. No frigir dos ovos, entretanto, a forma sobressai e atoniza o conteúdo.
Desde a tomada inicial de Vertigo, Hitchcock deixa claro que seu assunto vai para além de (sem deixar também de ser) um simples caso de mistério. Ainda nos créditos iniciais a câmera focaliza o belo rosto de Kim Novak, para, na seqüência, fechar em close primeiro na boca, e depois nos olhos da atriz. Está dado o mote da discussão que permeia todo o filme. Áudio-visual, o próprio cinema, o processo de (re)constituição da história para o espectador. O crítico Ismail Xavier costuma enfatizar bastante essa dimensão do cinema de Hitchcock, a genialidade com que o cineasta coloca em cena um terceiro elemento: o próprio espectador, ou melhor, seu olhar. Outro clássico nessa linha é Janela Indiscreta, em que o cineasta coloca como protagonista (de novo James Stewart com cara de Ivo Holanda inglês, aquele sujeito absolutamente comum). Um detetive que não pode andar, reconstruindo um crime a partir de pistas tiradas do processo de observação das janelas dos apartamentos vizinhos - fazendo com que seus filmes discutam seu próprio processo de constituição, requisito que os torna exemplares (ou quase) do cinema moderno, suscitando a admiração declarada de cineastas como Truffault.
No caso de Um corpo que cai, é clara a relação entre o detetive vivido por James Stewart e o espectador. O que acompanhamos no filme é a construção de uma fantasia, uma ficção feita para apanhar\cativar o detetive\espectador. No encontro inicial entre o detetive e o suposto marido, este constrói uma história que é uma farsa total, completamente absurda e inverossímil, que tornaria o filme mais próximo de um terror lado B mal feito. O detetive, como o espectador, a princípio não cai na lorota, mas, por fim aceita a proposta que vai ser sua perdição: ao invés de negar completamente desde o início, aceita dar uma observada de leve na moça. Igual aqueles filmes em que a gente diz: “vou assistir só um pedacinho”. Aberta essa concessão, tudo está perdido e lá se vai hora e meia. No momento em que ele aceita o contrato, tudo se perde e acompanharemos com ele a transformação daquela ficção inverossímil em verdade cinematográfica, com direito a história de amor romântica com macho protetor e fêmea inocente perdida. A genialidade do filme consiste, entre outras coisas, em não abrir mão por nenhum momento de seu caráter de história absurda - que fica ainda mais evidente pelo contraste com a rudeza da segunda parte, em que a moça é uma descarada (a típica mulher moderna para o cineasta, um tipo que ele detesta e sempre faz questão de desmascarar ou matar – veja Os Pássaros, Psicose, etc.) e o homem é um ser completamente em frangalhos. Acompanhamos a moça por cenários fantásticos típicos, como cemitérios, igrejas abandonadas, museus antigos, etc. A mensagem transmitida é bastante clara: vou construir para o detetive\espectador um cenário de novela romântica do século passado, só que deixando bem claro que não estamos no século passado, e fazendo com que ambos embarquem completamente nessa fantasia e a sintam como realidade. Melhor ainda, vou nitidamente construir essa realidade na frente de seus olhos, e ainda assim você vai cair como um patinho. Alguém aí duvidou da morte da moça? Tanto o filme é sobre a construção desse olhar que o primeiro contato efetivo entre o detetive e a esposa só se dá depois de um longo tempo. Antes acompanhamos diversas sequências sem diálogo, em que a história é construída pelo diretor\marido para o detetive\espectador, até atingir seu clímax, quando Madeleine se atira ao rio, e seu salvador pronta e pateticamente corre para salvá-la. Sim, Hitchcock está nos tirando e manipulando o tempo todo neste filme, desde o início.
Uma das cenas do filme é bastante paradigmática nesse sentido, sendo um dos marcos da história do cinema. Cristopher Nolan deveria ter mesmo feito um intensivão Hitchcock, e estudado essa cena por meses antes de se arriscar com A Origem, pois toda a idéia de multiplicação de camadas narrativas está contida nessa única cena, por conta da multiplicidade quase infinita de camadas de representação ali condensadas. É aquela em que o detetive segue Madeleine até o museu, e encontra a moça a olhar fixamente para um quadro, cujo figurino é bem próximo daquele que ela está usando no momento. Caso nos detenhamos com atenção sobre aquilo que está sendo representado, é absolutamente impressionante a quantidade de multiplicação de olhares presentes na constituição daquela fantasia. Nós, espectadores, estamos observando o detetive que está observando uma mulher que finge (representa) ser Madeleine, que pensa ser uma mulher do século passado, que observa um quadro de si, que por sua vez já é uma representação de alguém. Ao fim dessa quantidade absurda de mediações, o que temos não é a verdade, mas outra representação: o quadro, onde tudo começa\termina, nos devolvendo o olhar e (re)começando o jogo infinito de espelhamentos. O cinema e a vida como processo de construção é a raiz do mistério encenado pelo mestre do Suspense e do Cinema. Mas o filme vai além – estamos apenas na metade da história – colocando ainda outras questões, como se não bastasse a reflexão feita sobre o olhar cinematográfico em uma nada convencional história de suspense. E aqui podemos compreender a admiração do filósofo esloveno Zizek, um heterodoxo marxista lacaniano que escreveu um livro inteiro sobre o cineasta, ou antes, sobre como Hitchcock pode ajudar na compreensão da psicanálise lacaniana (Tudo o que você sempre quis saber sobre Lacan, mas tem medo de perguntar para Hitchcock – infelizmente sem tradução para o português). Pois é certo que acompanhamos a exposição do processo de construção dessa história estapafúrdia, fantasiosa, na qual embarcamos na maior boa vontade junto com o pobre detetive.
Mas o filme coloca em discussão ainda um segundo aspecto: o que acontece então quando essa ficção claramente construída nos é tirada abruptamente? A resposta é dada por aquela cena que mais parece uma viagem de ácido - outra ousadia técnica do filme, que utiliza inclusive animação. Depois do julgamento do reino masculino do qual o detetive é banido por incapacidade vem o desmoronamento da ficção do macho romântico protetor. É a perda da fantasia - e isso é fundamental - e não a perda da realidade, que causa o Trauma na personagem. O trauma é o fim abrupto da fantasia, a emergência do Real. A mensagem do filme não é, portanto, a de que o cinema é uma ilusão em que o espectador é levado a um simples processo de fuga da realidade. Mais complexo que isso, a ideia que sobressai é a de que essa fantasia (incluindo a cinematográfica) é uma componente estrutural fundamental de nossa realidade, dando forma a nossos desejos. A rigor não existe realidade sem o suporte da fantasia. O oposto da fantasia não é a realidade, e sim o Real traumático.
Na sequência do filme, pós-trauma acompanhamos o distúrbio psicológico do detetive, que teve sua vida arrasada, ficando por um longo período internado. Mas, mesmo após receber alta, percebemos que ele não consegue se recuperar completamente, vivendo sempre à procura de tudo que possa lembrar Madeleine, sem conseguir dar um rumo a sua própria vida, e muito menos descobrir alguma verdade por detrás dos acontecimentos passados. Seguimos uma subjetividade estraçalhada. Não um homem preso num mundo de fantasias, mas um homem sem fantasias. É aí que Hitchcock opera uma inversão genial no gênero policial - em seus grandes filmes ele sempre insere um elemento que rompe com o gênero em algum nível - ao fazer com que o protagonista descubra a verdade e se recupere do trauma, não indo atrás de vestígios e buscando pistas que permitirão a dedução lógica da verdade (modelo policial clássico), mas fazendo o caminho inverso, mergulhando outra vez na fantasia, reconstruindo-a como ela foi, enquanto farsa. É só quando ele consegue reconstruir Madeleine tal qual ela era para seu imaginário - o que implica em um processo de violência masculina e de submissão da mulher a esse imaginário, pois o olhar que se constrói no filme é masculino e culmina com a negação mais absoluta da mulher, sua morte no momento em que encarna por completo o papel que a nega e constitui - é que pode finalmente superar seu trauma, conseguindo desvendar a verdade, com resultados também trágicos, diga-se de passagem, especialmente para a mulher.
O filme trata do processo de construção da fantasia e da fantasia cinematográfica pelo olhar, mas trata também do grau de realidade dessa fantasia, seu caráter de estruturação simbólica do mundo. Como mostra a cena do museu, nada existe para além da multiplicação infinita dos olhares e das representações, sendo a verdade a própria constituição desse processo. A realidade, enquanto construção ficcional, ideológica, e o grau de realidade dessa ficção. Estão colocados o Cinema e a Indústria Cultural não como máquinas produtoras de fantasias, e sim, de realidades.
É pela complexidade das questões que suscita, sem perder seu caráter de entretenimento dos bons, que Vertigo é considerado um dos melhores filmes da história.
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(Pássaro Preto 18nov2010)
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